quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

11 – O Mito do treinar sobre carris

As declarações proferidas de treinadores com “a equipa ainda não está rotinada”, “faltam-nos automatismos”, “quero que os jogadores sejam capazes de jogar de olhos fechados, “nos treinos, as coisas já começam a sair mecanizadas” são bastante familiares. É a chamada tentação do piloto automático. Torna-se o treinar muito militarizado, no sentido de que o treinador dá as ordens e os jogadores têm que seguir à risca. Durante os exercícios assistimos a exemplos deste tipo: “joga por fora”, “tira da pressão”, “guarda a posição”, “troca com o ala”, “solta de primeira”. Esta obsessão não fica por aqui. Exagera-se na utilização de regras nos exercícios e acaba-se por retirar a capacidade de intervenção sobre o imediato, o aqui e o agora. Por exemplo, abusar da condicionante jogar a dois toques leva a que a gestão do instante, por parte dos jogadores, seja mais mecânica do que não mecânica, tende a tornar linear aquilo que não o é. Um outro exemplo do treinar sobre carris é as combinações ofensivas, repetidas até à exaustão, no sentido de levar os jogadores quase a decorá-las.

“Quando vou estudar o adversário e procurar identificar os seus comportamentos-padrão, constato que, muitas vezes, o desenvolvimento dessa dinâmica de jogo é, não tanto uma dinâmica, mas um automatismo mecânico”

José Mourinho

Com esta linha de pensamento os treinadores acreditam que podem chegar de forma mais rápida ao jogar que pretendem. É um erro crasso metodológico! Porque o futebol é um fenómeno extremamente complexo, caracterizado pela não linearidade. Um exemplo prático: alguém sujeita a um ditado. Este ditado é estudado, escrito, rescrito, decorado e nem um erro. Mas se este sujeito realizar uma redacção e não tiver capacidade de criar, recriar a partir de um novo contexto que lhe foi apresentado fica limitado. Mourinho no treino dá o tema mas são os jogadores que fazem a redacção. Se os níveis de desempenho que se pretende não estão a ser atingidos Mourinho intervêm mas sem dar respostas, soluções. È a chamada descoberta guiada.

“Não é fácil passar da teoria à prática, sobretudo com jogadores do top, que não aceitam o que lhes é dito apenas pela autoridade de quem o diz. È preciso provar-lhes que estamos certos. Comigo, o trabalho táctico não é apenas um trabalho onde de um lado está o emissor e do outro o receptor. Eu chamo-lhe “descoberta guiada”, ou seja, os jogadores vão descobrindo as coisas a partir de pistas que lhe vou dando. Para isso construo situações de treino que os levem por um determinado caminho. Eles começam a sentir isso, falamos, discutimos e chegamos a conclusões. Muitas vezes, paro o treino e pergunto-lhes o que estão a sentir. Respondem, por exemplo, que sentem o defesa direito muito longe do defesa central. “Está bem, vamos aproximar os dois defesas e ver como funciona”. E experimentamos uma, duas, três vezes, até lhes voltar a perguntar como se sentem. É assim, até todos, em conjunto, chegarmos a uma conclusão”

José Mourinho

2 comentários:

Anónimo disse...

"abusar da condicionante jogar a dois toques leva a que a gestão do instante, por parte dos jogadores, seja mais mecânica do que não mecânica, tende a tornar linear aquilo que não o é"
Grande leitura a sua, isto na prática (treinos) é obrigatório. É quase como tenhamos a obrigação de...
"descoberta guiada" uma terminologia que faz da relação treinador-jogador uma importante ambivalência para alcançar os objectivos pretendidos.

Caro José Carlos Gomes felicito pelo brilhante trabalho que está a realizar. Não sabendo quais as suas fontes pergunto em que trabalho(s) se baseia?

José Carlos Gomes disse...

Tenho todo o gosto em responder:
"Defesa à zona",Nuno Amieiro
"Liderança de José Mourinho", Fernando Ilharco e Luís Lourenço
"Mourinho, Porquê tantas vitórias", Bruno Oliveira, Nuno Amieiro, Nuno Resende e Ricardo Barreto
"Periodização Táctica" de Carlos Campos
Monografias realizadas por alunos da Faculdade de Educação Física da Universidade do Porto.