quarta-feira, 20 de maio de 2009

A lição teórica de Guardiola

O futebol do Barcelona 2008/2009 não deixou ninguém indiferente. Enquanto uns ficaram absolutamente rendidos, outros reagiram de forma mais reservada, considerando que numa competição mais exigente do ponto de vista atlético, como é a Liga Inglesa, por exemplo, esta filosofia teria pouco sucesso. Sem nunca se ousar colocar em questão a qualidade de jogo da equipa catalã, surgiu a velha dicotomia beleza/utilidade e muitos foram os que fizeram a defesa da tese de um Barcelona demasiado “macio”, menos pragmático do que o desejado e servido por um conjunto de jogadores que carecia de músculo. Dizia-se que, em encontros contra equipas atleticamente superiores e assaz competentes do ponto de vista táctico, este Barcelona não se conseguiria impor e que, apesar de praticar o mais belo futebol da Europa, esta não era a forma mais eficaz de se ter êxito.
Em primeiro lugar, há que dizer que num jogo de futebol, como em qualquer outro jogo, o belo é sinónimo de bom. Isto porque em qualquer coisa com um objectivo tão claro, como é o caso do futebol, é impossível aceitar que algo que não possa produzir consequências práticas possa ser belo. Depois, o erro crasso é acreditar que falta músculo a este Barcelona. É evidente que, em termos atléticos, esta equipa não é tão capaz como as grandes equipas europeias, mas o erro está em presumir que uma equipa de sucesso, no futebol actual, necessita impreterivelmente dos melhores atletas, no sentido em que estou a utilizar o termo. A musculatura desta equipa existe, ao contrário do que se pensa, embora seja de outra ordem.
É verdade que este Barcelona é tudo isto com que o caracterizam. Mas nenhuma dessas características tem necessariamente de ser um defeito. E esta é a grande lição de Guardiola. Numa altura em que, muitos pensam, se parece caminhar para um desporto cada vez mais musculado, no qual a força física e as capacidades atléticas são decisivas, este Barcelona vem deitar por terra essa ideia. O bom futebol, o melhor futebol, é aquele que é jogado com a cabeça, aquele que dá preferência aos atributos intelectuais. O futebol de hoje é um jogo de pouco espaço. Para muitos, tendo em conta essa evidência, os jogadores mais aptos serão, portanto, os mais rápidos, os tecnicamente mais evoluídos e os mais fortes. Se há coisa que este Barcelona vem provar é que isso, em rigor, não tem de ser assim. Os mais aptos são os mais inteligentes, os que decidem mais rapidamente, os que conseguem "fabricar espaços", os que possuem maiores índices de criatividade, etc.
É inegável que esta equipa joga um bom futebol, mas a sua grandeza não se esgota aí. Mais do que uma excelente ilustração de bom futebol, trata-se de uma verdadeira lição teórica sobre o jogo. Por trás desta equipa está um conceito que vem quebrar não só com muitos dos paradigmas actuais como também vem contradizer ideias e conceitos que, ao longo do tempo, foram elevados ao estatuto de dogma. Enquanto grande parte dos treinadores diz aos seus laterais para nunca jogar no meio, pois é mais arriscado do que jogar em profundidade na linha, este Barcelona postula o contrário. Os laterais devem jogar no meio, porque é no meio que a possibilidade de criação de apoios é maior e porque é regressando ao meio que as possibilidades de escapar ao “pressing” do adversário aumentam. Enquanto grande parte dos treinadores diz aos seus jogadores para não saírem a jogar caso o adversário pressione muito alto, pois é perigoso, este Barcelona não o admite, seja em que situação for. Um excelente exemplo desta “teimosia” foi a final da Taça do Rei. O Athletic de Bilbao optou, sobretudo depois de se encontrar a perder, por pressionar altíssimo, aquando dos pontapés de baliza do Barcelona. A ideia era fazer com que os defesas catalães não tivessem espaço para receber a bola e obrigá-los a jogar a contragosto, com saídas com pontapés longos. O Barcelona não fez caso disto e, ainda que a grande maioria dos treinadores desaconselhasse a sua equipa a sair a jogar nessas condições, saiu sempre a jogar. Com o auxílio dos laterais e do médio-defensivo, que baixou para servir de apoio, a equipa trocava assim a bola dentro da própria grande área, utilizando toda a largura do campo para criar linhas de passe, até que esta chegasse a uma das linhas. Nessa altura, um médio ou o extremo baixava para servir de apoio vertical e, recebendo a bola do lateral, entregava-a de imediato no médio-defensivo, ficando concluída a saída de bola. Alternadamente, dependendo da forma como o adversário pressionava, saíam também pelo meio, depois de conseguirem puxar os adversários para uma faixa e fazendo regressar a bola rapidamente aos centrais. O que é certo é que nunca desvirtuaram a sua maneira de jogar, mesmo correndo riscos tão elevados. Enquanto grande parte dos treinadores diz que não quer "rodriguinhos", que a equipa tem de ser objectiva, que um passe para trás só se faz em caso de aperto e que uma ideia de progressão deve estar sempre presente quando uma equipa troca a bola, este Barcelona vem dizer que isto não é bem assim e que nem sempre é para a frente que se joga, que a objectividade, quando excessiva, se transforma em previsibilidade. Este Barcelona, como joga, torna-se difícil de parar porque nunca se sabe por onde vai entrar, porque o seu futebol não se limita a fazer o mais simples, o mais objectivo, sendo, pelo contrário, complexo e imaginativo. Enquanto grande parte dos treinadores diz aos seus jogadores que qualquer nesga para chutar à baliza deve ser aproveitada, este Barcelona refuta essa velha máxima e Guardiola já disse mesmo que prefere que os seus jogadores, mesmo dentro da grande área, troquem a bola em vez de chutar à baliza. A ideia é concluir o lance apenas quando as possibilidades de êxito são consideravelmente boas.
Por tudo isto, este Barcelona, mais do que uma equipa que pratica um futebol agradável, mais do que uma rara excepção de sucesso com armas diferentes, mais do que um exemplo de bom futebol, fundamenta-se na destruição de predicados ancestrais. Representa uma autêntica reformulação teórica do jogo. E é algo que, perdurando, pode contribuir para modificar a mentalidade que, nos dias que correm, domina o jogo.

Nuno Amado

1 comentário:

Anónimo disse...

costuma-se dizer que quando nao se consegue vencer com o talento, vence com o esforço. e e' fantastico porque o barcelona consegue juntar ao seu grande talento, o esforço e a vontade de vencer. muito merito para o mister guardiola.